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Crises

Atualizado: 6 de set. de 2023


Vivemos um momento único na história em que nunca foi tão difícil realizar escolhas e construir a própria identidade. Quem sou, quem quero ser? A resposta a estas questões é exigente, pois diante de uma abundância de possibilidades de formas de ser, de trabalhar e de amar, torna-se necessário escolher e assumir a responsabilidade pelas consequências na própria vida. A incerteza se os nossos investimentos e o caminho que trilhamos nos trará ou não felicidade é angustiante, ainda mais diante da finitude da vida. A essência do homem deve ser por ele construída ao longo da sua existência e, no percurso, é comum que uma pessoa se depare com crises e questionamentos.


O desenvolvimento pessoal dá-se numa contínua superação de diferentes conflitos de natureza social e do exercício da autoavaliação acerca da própria posição nas interações com os outros e com o mundo. Durante o ciclo de vida há 8 fases normativas, esperadas de conflito psicológico e posterior reajustamento. Cada fase envolve uma crise na personalidade, constando de um acontecimento principal particularmente relevante nesse período e que permanece um acontecimento com alguma importância ao longo da vida. As crises devem ser resolvidas para o desenvolvimento de uma personalidade saudável e para que sejam internalizadas virtudes importantes para a vida. Abaixo apresento de modo sumário, cada uma destas crises:


0-18 meses: Crise da Confiança X Desconfiança.

Nesta primeira fase da vida, as grandes tarefas a serem conquistas dependem antes dos cuidadores do que do próprio e espera-se que a criança possa desenvolver-se a acreditar que o mundo é um local bom e que ela é merecedora de amor. Para tal, é essencial que a criança cresça com cuidadores amorosos, sensíveis e que promovam a sua autonomia e exploração, mas que também constituam sempre uma base segura de conforto para a qual poderá voltar quando necessitar. O bebé ama e precisa de sua mãe e quando não está com ela sofre de saudade (para além de, nesta idade, não saber bem diferenciar a si próprio de sua mãe, vivendo em um registo de dependência simbiótica), mas é no esperar que ela retorne e na concretização de seu desejo que se pode desenvolver a virtude da esperança. Ao crescer e descobrir sensações agradáveis que voltam a acontecer e quando a mãe confirma suas expectativas e esperanças, surge a confiança básica, ou seja, a criança tem a sensação de que o mundo é bom, que as coisas podem ser reais e confiáveis. Do contrário, surge a desconfiança básica, o sentimento de que mundo não corresponde, que é mau, ingrato ou de que não se é merecedor de amor.



18 meses - 3 anos: Crise da Autonomia X Dúvida e Vergonha

Neste período de vida pré-escolar, ocorre uma mudança na postura da criança, que, já conhecendo mais o mundo e dominando mais movimentos, busca autonomizar-se e explorar. Ocorre uma mudança na gestão do controlo na vida da criança, passando do externo para o autocontrolo, em que as crianças começam a substituir o julgamento dos pais pelo próprio. No entanto, gradualmente as crianças vão conhecendo as regras sociais e percebem que não podem usar sua energia exploratória à vontade. É comum nesta fase que as crianças passem a testar os limites dos pais com birras e comportamentos desafiantes. A maior conquista da autonomia também pode ser vista ao nível da higiene pessoal, na medida em que nesta fase a criança passa a controlar os seus esfíncteres e também tratar da própria higiene. Tais aspetos dão à criança grande autonomia, confiança e liberdade para tentar novas coisas sem medo de errar. No entanto, a liberdade sem limites não é saudável nem segura e por isso a dúvida e a vergonha são necessárias. A criança precisa de limites colocados por adultos e a vergonha (no sentido de perceber que falhou em algo que sabe fazer e não no sentido da humilhação) e a dúvida ajudam-na a reconhecer a necessidade desses limites e a desenvolver o autocontrolo. Se, no entanto, for criticada ou ridicularizada desenvolverá vergonha e dúvida quanto a sua capacidade de ser autônoma, provocando uma volta ao estágio anterior e o não desenvolvimento da virtude da vontade de viver, ou seja, a dependência. A virtude da vontade se manifesta em várias situações, como a manipulação de objetos, a verbalização que se inicia, a locomoção que avança em suas capacidades, entre outros. Neste estágio, o principal cuidado que os pais têm de tomar é dar o grau certo de autonomia à criança. Se é exigida demais, ela verá que não consegue dar conta e sua autoestima vai baixar. Se ela é pouco exigida, ela tem a sensação de abandono e de dúvida de suas capacidades. Se a criança é amparada ou protegida demais, ela vai se tornar frágil, insegura e envergonhada. Se ela for pouco amparada, ela se sentirá exigida além de suas capacidades. Vemos portanto que os pais tem que dar à criança a sensação de autonomia e, ao mesmo tempo, estar sempre por perto, prontos a auxilia-la nos momentos em que a tarefa estiver além de suas capacidades. Se a criança se sentir envergonhada demais por não conseguir dar conta de determinada coisa ou se os pais reprimem demais sua autonomia, ela vai entender que todo o problema dela, toda a dúvida e a vergonha vieram de seus pais, adultos, objetos externos. Com isso, começará a ficar tensa na presença deles e de outros adultos, e poderá achar que somente pode se expressar longe deles.



3 – 6 anos: Crise da Iniciativa X Culpa

Inicia-se então a fase escolar cuja grande virtude a ser desenvolvida é a finalidade, isto é, a vocação para ter iniciativas, criar coisas, descobrir e arriscar-se sem ficar paralisado pela culpa. É uma fase de grande conflito para as crianças, na medida em que sua autoestima está muito associada à sua capacidade de realizar tarefas e à aprovação dos pais, para além do conflito que emerge do sentido crescente de finalidade, que permite planear e realizar atividades, e dos problemas de consciência que poderão surgir desses planos. Durante este período a criança passa também a iniciar o desenvolvimento de sua identidade, compreendendo os diferentes papéis de género e a diversidade de opiniões e gostos das pessoas. Se a sua curiosidade “sexual” e intelectual, natural, forem reprimidas e castigadas, a criança poderá desenvolver um sentimento de culpa demasiado forte, diminuindo a sua iniciativa de explorar novas situações ou de buscar novos conhecimentos. Pode também tornar-se obsessiva com a perfeição e adotar uma postura na vida em prol de agradar os outros e não a si mesma, assim, esvaziando-se de autenticidade e de felicidade. Se houver demasiada rigidez e cobrança dos pais. poderá também desenvolver somatizações ou regredir a fases anteriores, podendo, por exemplo, voltar a ter problemas com questões de eliminação e higiene.


6 anos – puberdade: Crise da Competência X Inferioridade

Nesta fase, a criança deve aprender diferentes competências (intelectuais, físicas, musicais, artísticas, escolares, etc.) e ter experiências de sucesso, vindo a desenvolver a virtude da noção da própria competência. Neste período a criança também passa a frequentar a escola, o que propicia o convívio com pessoas que não são seus familiares, exigindo maior sociabilização, trabalho em conjunto, cooperatividade e outras habilidades necessárias. Um dos principais determinantes da autoestima é a visão das crianças acerca da sua capacidade para o trabalho produtivo, de conseguir criar e fazer diferentes tarefas e é crucial que uma pessoa possa se desenvolver em diferentes campos, superando complexos de inferioridade diante de práticas e atividades em que não for tão competente. O reconhecimento de talentos e a promoção dos interesses das crianças é aqui essencial.


Adolescência: Crise da Identidade X Confusão de Identidade

Esta é a fase auge daquilo que seria a crise existencial, cuja maior tarefa é a realização da passagem da infância para a idade adulta. O adolescente deve determinar o seu próprio sentido de identidade e ser fiel àquilo que acredita ser e deseja. Caso contrário, poderá perdurar por muito tempo em uma confusão de diferentes papéis e infinitas ponderações sobre possibilidades para a sua vida. Para formar a identidade, os adolescentes devem assegurar e organizar as suas capacidades, necessidades, interesses e desejo de forma que possam ser expressos num contexto social e isto, independente da aprovação paterna. A identidade e o adquirir de uma maturidade adulta constitui-se quando são resolvidas 3 questões essenciais: (1) escolha de uma profissão e de um propósito a ser atingido com o trabalho, (2) adoção de valores próprios e o (3) desenvolvimento de uma identidade sexual satisfatória. A resolução satisfatória da crise de identidade leva ao desenvolvimento da virtude da fidelidade: uma lealdade sustentada e a capacidade de realizar compromissos, seja no compromisso com alguém amado, na identificação com um conjunto de valores, ideologia, religião ou com um movimento político. É muito raro que a crise de identidade seja resolvida na adolescência, perdurando na fase adulta. A não resolução desta crise pode levar a diferentes processos:


1- Uma regressão a estados infantis de dependência e a consequente incapacidade de realizar compromissos e ter uma vida sexual satisfatória,


2- O aparecimento de um falso self (viver a partir da aprovação do outro e não pelos próprios valores e desejos) ou


3- O continuar na exploração e experimentação em busca do autoconhecimento, sem muita ponderação acerca da finitude da vida e a necessidade de fazer escolhas.


É claro que ao longo da vida, vamos mudando e nos descobrindo a cada novo reencontro, no entanto, após resolvida a crise identitária da adolescência, estas novas alterações são integradas e assimiladas na personalidade da pessoa sem gerar conflitos de descontinuidade, isto é, sem o receio de não saber quem se é. Uma coisa é reconhecer a nossa natureza cambiante, sabendo de uma continuidade histórica de nossa personalidade e das narrativas que fomos criando para as nossas experiências, outra é a grande angústia ao reconhecer a mudança, devido a ainda falta de solidez do self e o medo da descontinuidade.


Jovem adulto: Crise da Intimidade X Isolamento

A tarefa principal na fase adulta é a capacidade de estabelecer laços íntimos de amor e amizade sem sentir-se a perder a própria identidade pela proximidade e identificação ao outro. Para tal é preciso que a fase anterior tenha sido resolvida, pois ao saber quem se é, um não teme a profunda intimidade, não teme o risco de "perder-se no outro". A virtude a ser conquistada é o amor, a capacidade de lutar pelas relações amorosas e de amizade e que, diante de conflitos e frustrações, se opte pela busca de encontrar soluções em nome de aprofundar a intimidade ao invés do refúgio no isolamento. Nesse momento o interesse, além de profissional, gravita em torno da construção de relações profundas e duradouras, podendo vivenciar momentos de grande intimidade e entrega afetiva. Caso ocorra uma decepção a tendência será o isolamento temporário ou duradouro, o confiar x não confiar, questões que sempre acompanharão a vida de um e que moldarão o seu estilo e forma de vincular-se às pessoas. Nesta fase, caso não resolvidas as questões infantis primárias (primeira crise) com vista a relacionar-se de modo seguro (a confiar em si, nos outros e no mundo), serão repetidos padrões relacionais de vinculação disfuncionais nas relações afetivas, tais como o evitamento de compromissos, o desespero e/ou dependência destes ou formas mais desorganizadas de relacionar-se onde é muito difícil a compreensão e a assimilação de aspetos socioemocionais.


Meia-idade: Crise da Produtividade X Estagnação

Nesta fase da vida há inúmeros processos, que vão desde o luto da juventude e de possibilidades passadas à um reavaliar profundo da vida até o momento. Aquele que na adolescência e idade adulta manteve um falso self poderá sentir enorme angústia e precisar de uma completa reestruturação de sua vida, sofrendo ao aperceber-se de sua não autenticidade com o passar do tempo. Também, aquele que não desenvolveu as virtudes do amor e do compromisso, poderá sentir-se à deriva e triste diante de suas poucas conquistas e laços seguros e estáveis. Nesta fase há ainda uma preocupação com a formação e orientação da geração seguinte que agora passa a se autonomizar. Diante destas situações, um pode estagnar-se e paralisar-se de angústia ou redirecionar as suas energias para dedicar-se à sua família, à sua carreira ou atuar em prol de mudanças sociais. Nesta altura da vida, a pessoa também terá adquirido muitos conhecimentos e aprendizagem. buscando comunicar e transmitir aquilo de seu legado aos outros. A virtude originada da resolução dessa crise é o cuidado, o cuidado com a vida e o desejo de dedicar-se apesar das perdas avaliadas.


Anos posteriores: Crise da Integridade X Desespero

Nos últimos anos de vida, aproxima-se da morte e o encarar da finitude faz uma pessoa refletir sobre a sua própria existência e os momentos em que acreditou ter se eternizado: no trabalho que realizou, nas pessoas que amou e no legado que deixou. É preciso aceitar o significado e o percurso da própria vida, caso contrário uma pessoa estará lançada ao desespero sobre a incapacidade de reviver a vida. A virtude deste profundo reviver e refletir a vida é a sabedoria.



Referências:


Erikson, E. H. (1976) .Identidade, Juventude e Crise. Rio de Janeiro: Zahar editores.

Erikson, E. H. (1987) Infância e Sociedade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar editores.

Sartre, J. P. (2014) O existencialismo é um humanismo. 2. ed. Petrópolis: Vozes


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