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Para Muito Além do Diagnóstico

Atualizado: 6 de set. de 2023


Imagem: Ansiedade (1894) de Edvard Munch


O diagnóstico, tal como expresso no DSM (Manual Estatístico de Diagnósticos), e mais amplamente usado no exercício da psiquiatria, pode ser melhor compreendido não enquanto uma definição do estado de saúde mental de uma pessoa, nem tão pouco enquanto uma descrição de suas características e identidade. O diagnóstico é apenas uma ferramenta que auxilia alguns membros da área da saúde a reconhecerem, em um nome, a sintomatologia predominante de um paciente. Por ex., ao dizer que alguém é bipolar, pode-se reconhecer que há a oscilação de humor, assim como, se alguém sofre de perturbação obsessivo-compulsiva, que existe um padrão comportamental de pensamentos obsessivos e comportamentos compulsivos e ritualísticos. No entanto, nenhuma descrição de sintomas traz informações acerca da personalidade da pessoa ou da natureza de sua angústia. Para compreender a saúde mental é essencial olhar para a pessoa em todo o seu contexto histórico e social, bem como na sua história de desenvolvimento e relações/experiências ao longo da vida. Sintomas de obsessão e compulsão em uma pessoa que não teve uma família acolhedora e que sofreu negligência serão muito distintos da realidade de uma pessoa com os mesmos sintomas mas que cresceu e experienciou uma família enquanto base segura.


O sintoma é uma manifestação de angústia e é essencial compreender a natureza desta angústia. No primeiro caso exemplificado, uma pessoa que não teve a base da continuidade de relações seguras e acolhedoras, pode ter grandes dificuldades em ver-se como uma pessoa individual, afinal, se ninguém a viu, se ela não existiu para ninguém de modo continuado, como irá existir também para si? Nesta pessoa, as suas compulsões podem vir de uma angústia de fragmentação, de aniquilamento, isto é, a pessoa tem tais comportamentos para dar uma sensação de controlo e evitar entrar em contacto com a angústia avassaladora resultante da negligência. No segundo caso, tendo a pessoa tido a experiência de amor e sido reconhecida e vista, a sua angústia pode ser de outra ordem, talvez de perda, realizando certos movimentos e comportamentos inconscientemente a buscar evitar que perca o amor daqueles que admira e que nela têm certas expectativas.


Não desmereço aqui, no entanto a utilidade do diagnóstico na partilha interprofissional, assim como na maior facilidade para a indicação de certos medicamentos quando estes se apresentam como necessários para aliviar o sofrimento. Mas é essencial identificar e conhecer o aspeto reducionista de diminuir um caso clínico à uma nosografia de identificação biomédica. Na psicoterapia, particularmente na psicanálise, procura-se antes de tudo avaliar o desenvolvimento psíquico da pessoa, isto é, diante daquilo que experienciou e viveu na vida, qual a sua maturidade psíquica, sendo a maturidade não uma questão de comparação entre comportamentos infantis e adultos, mas da forma como a pessoa consegue viver uma vida funcional sem trazer sofrimento a si nem aos outros, bem como ao nível de sua capacidade de regular as próprias emoções e de se relacionar com as pessoas com base na realidade.


Apesar de não haver um enfoque no diagnóstico, em psicanálise podemos falar em estruturas de personalidade, sendo estas perfis que acabam por indicar como a pessoa se relaciona consigo, com os outros e com o mundo. Há três estruturas principais (isto varia entre autores): a psicótica, limítrofe (borderline) e a neurótica. Muito resumidamente, independentemente da sintomatologia, podemos distinguir tais estruturas de personalidade (ou, de desenvolvimento e maturidade psíquica) pela natureza da angústia, pela forma como a pessoa se relaciona com os outros e pelos mecanismos de defesa usados em predominância.


A natureza da angústia existencial, muitas vezes não é só uma, mas pode haver uma predominância. Entre elas há a angústia de deixar de existir (psicótica), a angústia de não existir ao olhar de outra pessoa (borderline), e a angústia de saber-se existir, mas ter a dor da perda de amor do outro (neurótica). Quanto à forma como a pessoa se relaciona consigo mesma, com o outro e o mundo, depende muito do quanto ela teve estabilidade na vida, particularmente da continuidade de relações afetivas e seguras, tendo as relações primárias com os cuidadores aqui um peso substancial. Imagine uma criança que nasceu e é negligenciada, não tendo as suas necessidades supridas nem, tão pouco, sendo acolhida e acarinhada; como ela sabe que existe se ninguém olha para ela? Sem saber existir para o outro, sem ser representada internamente ao outro, tão pouco ela conseguirá realizar representações da realidade. Para se ter uma representação interna (mental) de algo ou alguém, é preciso antes de ter se relacionado repetitivamente com tal, tendo-se a certeza de sua existência apesar de ocasionais ausências. Não é porque não estás na presença de algo (pode ser desde um objeto a uma pessoa, uma relação, um sentimento...) ou que não tenhas constantemente provas concretas de sua veracidade, que implica que tal não exista.


A ausência da capacidade de representação do real, associada a uma dependência ao outro são características da psicose. Não havendo uma realidade em que é acolhida e lhe faça sentido, cria-se uma neorealidade. A psicose não é só fruto da negligência, mas pode o ser também de uma constância do terror, sendo insuportável aceitar e lidar com a realidade.


Em um outro caso, uma pessoa pode ter uma experiência diferente, em que é acolhida e amada, mas por outras vezes, rejeitada ou, mal tratada. A sua representação de si será frágil, se saberá existir, mas parcialmente, assim como o outro. Constantemente haverá a dúvida da presença e do amor do outro, resultantes de uma angústia de abandono. Tal perfil é característico de uma personalidade borderline.


Por fim, a angústia predominante dos neuróticos é a da perda, temendo perder o amor e a presença daqueles que o viram e valorizaram. Temem a perda de um laço, mas tal não implica, como no caso borderline, a perda também de si mesmo.


Quanto à forma como se relacionam com os outros, tal dependerá da capacidade de representar mentalmente o outro, reconhecendo-o como alguém distinto de si mesmo. No caso da psicose, a relação com este outro é quase inexistente uma vez que há uma confusão entre os limites do Eu e do Outro. Não se relaciona, mas se absorve o outro, o introjeta, ou, se cria uma realidade para o outro, se projeta. Por ex. para alguns, um simples olhar pode ser compreendido enquanto um sinal de perseguição. No caso da personalidade limítrofe, há uma relação com o objeto, mas parcial. Não se vê o outro e o compreende em sua própria realidade e como uma pessoa total, com aspetos bons e ruins, mas oscila-se, sendo o outro ora uma figura idealizada ora rejeitada. Não há o que se chama de constância de objeto. Por fim, no caso do neurótico, tendo sido as falhas naturais de seus cuidadores toleradas pela contingência de amor e cuidado, não vêm o outro enquanto objeto persecutório ou como um ser salvador e idealizado, mas por sua pessoa real, um objeto total, com aspetos bons e falhas, e a confiança na continuidade se dá porque após toda separação e dificuldade, se teve reparação.


Por fim, no que se refere aos mecanismos de defesa, estes seriam as formas que as pessoas utilizam para melhor lidar com as suas angústias e sofrimento. Uma pessoa no registo psicótico terá predominantemente uma angústia de fragmentação, ou aniquilamento (medo de morrer, medo de enlouquecer, medo da perda de si) muito decorrente do facto de não ter tido relações de vinculação estáveis em que pudesse confiar. Sem amparo e sem o acolhimento exterior, fica difícil para uma pessoa organizar-se ao nível dos seus limites, daquilo que é o Eu e aquilo que é o Outro, assim como, sem a presença de alguém para dar voz às suas vivências e auxiliar na sua compreensão emocional, tal pessoa não terá a estrutura psicológica para elaborar as suas angústias, isto é, de as compreender ao nível da linguagem, do pensamento e da representação. A representação exige o conhecimento e a confiança de que algo que não está presente existe, de que se pode fazer referência a algo pela sua representação. Desta forma os psicóticos têm muita dificuldade em compreender o mundo simbólico, atendo-se às compreensões literais e concretas. Os mecanismos de defesa mais utilizados seriam de natureza mais primária, havendo não somente a fuga de sua realidade angustiante (criando uma neo-realidade tal em alucinações e delírios) como a dificuldade na diferenciação do Eu e do Outro, assim como das próprias fantasias e da realidade. Falamos aqui em fenómenos como a idealização (projetar em algo ou alguém características irreais mas as quais admira e se deseja), a identificação projetiva (atribuir ao outro características e desejos pessoais, ex. paranoia - é a pessoa que sente agressividade e quer fazer mal aos outros, mas acredita que os outros que a querem fazer mal), a negação, a dissociação (esquecer inconscientemente certas experiências emocionais, as deixar de lado tal como se não existissem ou fossem irrelevantes), entre outros. Por outro lado, uma pessoa no registo neurótico terá tido as experiências necessárias para a confiança no outro e na continuidade da presença das pessoas e objetos com que se relaciona. Conseguirá aceder e compreender representações, elaborando as suas angústias fazendo o uso de mecanismos de defesa mais organizados, tais como a sublimação (expressar pela arte, pela poesia, pela criação), o uso do humor, o recalcamento (inconscientemente separar da consciência de si e da realidade aspetos que não são facilmente toleráveis), a racionalização (criar redes argumentativas para compreender e modificar a natureza das próprias emoções), a intelectualização, entre outros. A natureza da angústia predominante será a angústia de perda (medo da perda do amor) e de culpa, apenas possíveis quando já se sabe ter pertencido ou pertencer, ter sido amado por alguém. Por fim, a estrutura limítrofe se situa de certa forma em um meio termo das outras estruturas, apresentando uma grande inconstância, oriunda da busca de resolver a angústia de abandono (o temor aqui é da pessoa perder-se caso perca o amor de uma pessoa, existe sempre uma desconfiança das intenções do outro). A pessoa procura incessantemente a presença contínua e estável de alguém, a fim de existir para o outro e para si de uma forma mais integral e não apenas parcial como outrora se revelou para cuidadores insuficientes, por ex. aqueles que algumas vezes eram presentes e outras muito ausentes, assim como, embora tivessem atitudes positivas, também tinham outras completamente opostas. Aqui existem representações, no entanto parciais, de forma que há uma grande dificuldade em analisar os factos e as pessoas em sua totalidade, isto é, em seus aspetos "bons" e "maus", oscilando entre visões idealizadas e visões destrutivas diante de pessoas significativas.


É importante ainda ressaltar que embora uma pessoa possa se organizar predominantemente em uma destas estruturas, não implica que ela não tenha aspetos de sua personalidade característicos das outras estruturas. Por ex. uma pessoa de estrutura neurótica (acede a representações e simbolismo, tem discurso e narrativa de si organizada, consegue conceber e experienciar os outros como contendo aspetos tanto "bons" como "maus" em si - suporta a ambivalência, etc.) pode ter núcleos psicóticos ou limítrofes, tal como ter uma tendência a idealizar excessivamente um/a companheiro/a amoroso/a, tornando-se dependente deste e negando aspetos negativos da relação.


Não me alongarei mais na explicação das estruturas de personalidade, sendo um assunto complexo ao qual me dedicarei posteriormente. Mas é essencial refletir que tais personalidades são oriundas da relação da pessoa com o seu meio e com as pessoas com quem conviveu e convive. A psicopatologia ou o sofrimento é relacional, é um processo e não é algo que está em uma pessoa, mas é algo que a pessoa está a viver. Uma pessoa nunca é algo, mas está a ser conforme múltiplos fatores que sustentam a sua realidade. Tal se aplica não somente a nível individual, mas de toda uma sociedade. Afinal, muitas pessoas são ansiosas em si, ou reagem e se adaptam a um mundo e sociedade ansiógenos, que exigem constante mudança, prazer imediato e o alcance de certos padrões idealizados? Focar no diagnóstico é não só reducionista como também antiético, na medida em que se acaba de certa forma por reduzir a pessoa a um estigma, uma categoria, a desconsiderar que a patologia é uma adaptação a um meio (família inicialmente) e sociedade com dinâmicas disfuncionais.


É preciso analisar profundamente e modificar as estruturas. O conhecimento destas liberta, afinal, o ser nunca é, mas está a ser.





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