Iniciarei por brevemente apresentar a natrueza das emoções, posteriomente chegando à paixão e as formas de vivenciá-la.
As emoções são funções complexas, expressando-se a níveis fisiológicos, comportamentais e mentais, e são percebidas enquanto preocupações que afetam a atenção e ordenam prioridades em meio às preocupações humanas. As emoções nos guiam sobre como está a ser a natureza da nossa relação com os outros e o mundo, elas nos ajudam! Há emoções básicas, de origem evolutiva mais antiga, como o medo, as quais exigem pouco processamento mental e elaboração e estão relacionadas a respostas comportamentais mais automáticas, como a fuga diante de algo ameaçador. Há, entretanto, no caso dos humanos, para além das emoções básicas, emoções mais complexas, as quais surgem com o advento da linguagem e trazem consigo a possibilidade de criar significados às emoções, bem como de as modular e compreender dentro de um contexto social e cultural, como por exemplo, a vergonha e a culpa. As emoções complexas, logo, apontariam para padrões de interação com o mundo e com os outros, como por exemplo de desagrado e agrado, e consequentemente, para características de nossa auto-percepção no mundo.
Sendo evolutivamente mais antiga do que a linguagem e a racionalidade, a emoção nos controla mais do que controlamos a ela, entretanto, é a partir do fundamento da linguagem e do pensar sobre a própria emoção que a mesma passa a poder ser moldada e simbolizada de diferentes modos. Criam-se esquemas relacionais ou, também pode-se falar em padrões relacionais implícitos em que, a partir de experiências repetitivas e significativas que tivemos na vida, criamos quase que um pacote de percepção do mundo, nos preparando para aquilo que prevemos. Diante de uma situação, sentiremos e reagiremos de acordo com as nossas experiências prévias que, gradualmente foram moldando a nossa percepção de nós mesmos, do outro e do mundo. Acabamos por repetir estes padrões e, muitas vezes, os princípios que os organizam mentalmente são por nós desconhecidos, isto é, inconscientes. Por ex: "me afasto das pessoas porque serei abandonado", "quem ama se sacrifica", "não mereço amor", "pessoas impulsivas são mais genuínas", "o mundo é cruel e não posso confiar em ninguém", entre outros.
O processo de expressão e experiência emocional é dinâmico, variando com as nossas aprendizagens e novas relações. Não só a emoção em si é alterável, como também os mecanismos neurais subjacentes, de modo que, pela plasticidade neural, o cérebro e o organismo de uma pessoa se adaptam aos seus hábitos e circunstâncias. Por exemplo: constantes experiências psicossociais negativas, sem apoio afetivo e associadas a significações negativas destas experiencias, podem levar ao desinvestimento de uma pessoa na realidade, algo que se espelhará biologicamente com a queda de neurotransmissores associados ao prazer, à motivação e à recompensa. Uma pessoa que foi abandonada acreditará inconscientemente que voltará a ser, tendo atitudes e emoções antecipatórias a tal, porém. se tiver sucessivas experiências distintas, em que não é deixada, todo o seu padrão relacional implícito poderá ser modificado. O cérebro fará novas associações e diante de uma nova relação, não mais automaticamente se reagirá com o temor do abandono.
Paixão
A paixão é uma experiência muito marcante na vida das pessoas, não somente pela intensidade das alterações emocionais vividas, como pela sua importância na vida de muitas pessoas, compondo então a fonte das mais fortes memórias. Quando a intensidade emocional é associada a certas crenças e pensamentos, como por exemplo, o receio de vulnerabilidade, tal crença é acentuada. Nas relações vive-se no dilema entre a independência x intimidade e, para viver tal experiência com bem-estar, é necessário que os envolvidos tenham uma personalidade integrada, bem como capacidades de regulação emocional e vinculações seguras. Em outras palavras, é essencial que se tenha a capacidade de gerir emoções negativas e normais de surgirem, como a ansiedade e o ciúmes, bem que as pessoas tenham tido ao longo da vida experiências estáveis de cuidado e carinho, garantindo que pudessem explorar a vida e sua identidade sempre tendo um local e alguém para quem voltar. Para aqueles que tiveram a presença de cuidados ambivalentes ou a ausência destes, a experiência da vulnerabilidade na paixão pode ser avassaladora, bem como o receio, de mais uma vez, ser deixado.
Mas o que ocorre na paixão? É um fenómeno incrível e causa alterações no corpo que podem se assemelhar à ingestão de anfetamina. Ao nível hormonal, há o aumento da produção de testosterona e de estrogénio (relacionados ao desejo sexual), de cortisol (stress e ativação), adrenalina (sensações de ansiedade, insegurança. euforia, batimento cardíaco e respiração acelerados) e de oxitocina e vasopressina (associados ao apego). Ao nível do funcionamento mental, ocorre a inibição do lobo frontal, destacando-se a perda da capacidade de filtro e crítica, de planeamento, controle da impulsividade, previsão de consequências e tomadas de decisão. O bem-estar e a energia associados à paixão se devem a alterações também nos neurotransmissores, com aumento da produção de dopamina (sensação de prazer e bem-estar), de noradrenalina (aumento da sudorese, da energia, positividade e diminuição da fome e da sede), bem como a queda da serotonina. Alguns autores (Borges, 2015; Calabrez, 2017) inclusive comparam a paixão a um estado de perturbação obsessivo compulsiva, pois a dopamina elevada e e serotonina baixa estão associadas aos mecanismos das adições, obsessões e compulsões (áreas de recompensa- núcleo caudado e VTA). Tal pode ser visto na constante invasão de pensamentos (obsessão) relacionados ao objeto amoroso e a necessidade de lhe comunicar (compulsão). Mesmo que sutil, há um ciclo de ansiedade da perda do interesse do objeto, compulsão ao reencontro e alívio. Mas sendo a paixão um fenómeno avassalador, o que distinguiria a paixão normal da patológica? Algumas diferenças são marcantes:
1- Na paixão normativa um preserva o senso de si e dos seus interesses pessoais.
2- Apesar de ter certa dificuldade, é possível controlar impulsos.
3- No término há mais luto da relação e menos melancolia e derrotismo.
4-Há o período de paixão inicialmente, mas com o evoluir da relação surge um vínculo de confiança e não mais a constante presença da insegurança inicial.
5-As sensações da paixão em sua intensidade duram no máximo 3 anos.
Há diferenças individuais também na vivência da paixão: pode-se optar por alimentar fantasias e maximizar o estado passional dado seu bem-estar ou evitar a idealização, entretanto tais atitudes dependem não só de fatores de personalidade, como também de experiências pessoais e de referências simbólicas.
Paixão Disfuncional
1- O outro e a relação se torna prioritária acima de tudo para o indivíduo, em detrimento de outros interesses antes valorizados. Pode se apresentar como completa dominação (comum em forma de relações abusivas - nos homens mais comum o ciúme e controlo) ou subordinação (mais comum nas mulheres) ao outro.
2- Falta de controle e de liberdade de escolha sobre a conduta de prestar cuidados ao outro. Repetitivo e impulsivo (necessidade de receber afeto constante e evitar menos-valia).
3- Ausências ou conflitos levam a sensações de ameaça avassaladoras, culminando na oscilação entre culpa, angústia, raiva e amor. No término podem ser presentes chantagens emocionais ou fenómenos como depressão ou até suicídio por "amor". O desinvestimento na vida, nestes casos, seria tida como uma recusa à perda do vínculo, de modo que na finalização da história de um, fique eternizado o legado de uma relação.
4- Há sinais e sintomas de abstinência;
+ indivíduo reconhece que exagera e gostaria de controlar suas atitudes porém não o é capaz,
+ é despendido muito tempo para controlar as atividades do parceiro ou as rastrear.
+ há grande abandono de interesses e atividades anteriores do indivíduo em nome de se dedicar mais ao parceiro e aos interesses do mesmo.
+ a conduta é mantida apesar de notadas maiores dificuldades e danos na vida pessoal e advertência de familiares e amigos.
"Quanto mais me perco, mais me encontro no outro". Mas e se alguém nunca se encontrou? Para que as emoções de uma pessoa sejam adaptativas, é essencial tanto que o organismo, a fisiologia de um seja normal e que a pessoa tenha tido relações estáveis e afetuosas, bem como que tenha tido referências saudáveis na cultura em que se insere. Em alguns meios culturais, ainda se preza pela ideologia da metade da laranja, defendendo que as pessoas não são completas sozinhas, o que difunde crenças disfuncionais e expectativas irrealistas das relações. Outra necessidade, como dito anteriormente, seria a experiência vivida de acolhimento e pertencimento, de modo que uma pessoa desenvolva segurança em si, em seu valor e no amor que merece. Com contínuas experiências de desamor ou rejeição, crenças de "não ser merecedor" podem levar ao amor patológico, mesmo que a pessoa não tenha consciência disso. Uma pessoa acaba então por evitar o abandono e necessitar de constante confirmação de que se é amado. Outros fatores que podem levar a tais difíceis padrões de relações são quando crianças crescem em lares com elevado autoritarismo, ou quando têm de cuidar das necessidades dos pais, pouco tendo espaço para as próprias necessidades. Mais à frente, tal pode levar a dificuldades na construção da própria identidade e ,logo, à relação simbiótica de fusão na identidade do outro que aqui estamos a falar. Ainda, estes modelos de relação podem ser aprendidos por crianças ao os observarem em seus pais.
Na vida adulta, muitos repetem este padrão e acabam por vezes por almejar objetos de amor quase que inalcançáveis, visando a resolução do conflito interior de que são dignos de amor até por aqueles que inicialmente os rejeitavam. Tais escolhas enviesadas, em geral culminam em relacionamentos ineficazes ou sem reciprocidade, confirmando assim os esquemas relacionais internos. Os sujeitos tendem a ter relações com pessoas, cujas crenças e sentimentos são idênticos quanto à proximidade aos outros, intimidade e dependência dos outros. Os sujeitos ansiosos tendem por isso a procurar parceiros que se sentissem desconfortáveis quanto à proximidade emocional, de forma a confirmar as expectativas e crenças próprias (Collins & Read, 1990).
Apesar de tais padrões, os esquemas aqui falados são dinâmicos e pessoas podem aprender, em novas relações e especialmente com a realização de psicoterapia, a investirem antes em si mesmas de modo que, amando-se a si, poderão melhor ser amadas. Como diz Freud, "todo excesso cumpre uma falta" e cabe cuidar e aparar essa falta, investir na auto-estima pessoal, nas próprias capacidades, no auto-cuidado e no auto-conhecimento (quais as minhas necessidades, valores, interesses) para se poder amar em equilíbrio e com bem-estar.
Finalizo com a frase de uma escritora:
” Eu não quero um amor que me complete, pois já o sou sozinha, eu quero um amor que me transborde”. Clarice Lispector:
Referências
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